Porta, portão e porteira. Se carregou o sotaque na pronúncia da letra “R” nas três primeiras palavras, saiba que você tem um pezinho em Mato Grosso do Sul. Conhecido como “R caipira”, esse modo de falar, com a consoante mais forte, é típico dos sul-mato-grossenses, que celebram os 47 anos da criação do estado nesta sexta-feira (11).
Se há algo que une Mato Grosso do Sul em um só povo, é o sotaque. As raízes linguísticas do estado refletem a conexão entre vários povos e diversas regiões do país e do mundo.
No entanto, pouco se sabe sobre a origem dessa pronúncia, que gera memes, olhares estranhos e está no centro da discussão sobre preconceito linguístico no Brasil.
O Primeira Página buscou a explicação sobre esse sotaque em específico e conversou com a professora de Língua Portuguesa e redação jurídica Maria Fernanda Borges Daniel de Alencastro.
Maria Fernanda explicou que todo sotaque é resultado da colonização e da relação entre povos de culturas diferentes. “Esse fenômeno sofreu e continua sofrendo mudanças significativas que caracterizam um povo único, marcado pela diversidade, uma vez que recebe pessoas dos mais diversos estados e países, somando-se aos povos nativos”.
O poRRta, poRRtão e poRRteira são frutos de interações linguísticas, como comenta a professora. Esse fenômeno tem um nome científico e outro popular: “R retroflexo” e “R caipira”, respectivamente.
“O erre retroflexo é um fenômeno sociolinguístico resultante do contato entre pessoas com diferentes formas de falar. O famoso ‘erre caipira’ vai além do viés geo-sociolinguístico, tratando-se de fenômenos socioculturais que permeiam as diversas línguas e variedades encontradas em diferentes lugares, incluindo o estado de Mato Grosso do Sul, que recebeu influências significativas do interior do estado de São Paulo, além da contribuição dos bandeirantes”.
Os bandeirantes eram grupos de pessoas paulistas que deixaram o estado de São Paulo para explorar o que hoje conhecemos como Centro-Oeste brasileiro. Esse processo de colonização ocorreu entre os séculos XVI e XVII.
Ao longo de mais de um século, a mistura linguística entre bandeirantes, indígenas, pessoas escravizadas e imigrantes foi moldando o sotaque “caipira” no interior do Brasil.
Maria Fernanda contextualiza as razões pelas quais o Brasil possui várias formas de falar a Língua Portuguesa:
“O nosso português tem influência das muitas línguas indígenas faladas aqui em 1500 — e algumas ainda são! — dos diferentes tipos de português de Portugal do período de colonização, das línguas africanas que chegaram durante a escravidão e dos imigrantes de diferentes partes do mundo (italianos, japoneses, alemães, holandeses, ucranianos, poloneses)”.
O nome dado ao sotaque adquirido em Mato Grosso do Sul se deve à posição da língua durante a fala. Quando pronunciamos palavras com “R”, um movimento inconsciente faz com que a língua seja jogada para trás.
“Quando chega o ‘r’, arranha a garganta ou pressiona a língua atrás dos dentes para emitir o som que aprendemos a fazer — na base da imitação. Ele é chamado de retroflexo porque a língua faz um movimento para trás. E é conhecido como caipira porque foi levado pelos bandeirantes para o interior do Brasil. De Santa Catarina ao Mato Grosso do Sul, é possível ouvir esse ‘R’ tão marcante”.
Segundo a professora Maria Fernanda, o “R retroflexo” é uma herança indígena no Brasil. O movimento da língua para trás durante a pronúncia da consoante é característico dos povos originários.
A interação entre bandeirantes e indígenas foi fundamental para que esse sotaque “caipira” se espalhasse pelo interior paulista, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
“Aqui no estado de Mato Grosso do Sul, usamos o ‘erre retroflexo’ com naturalidade e nos orgulhamos de assim falar, pois entendemos que nossa cultura é diversificada. O respeito pela diversidade do falar é o que nos faz compreender que o mais importante é a comunicação e o entrosamento com as mais diversas culturas. Como bem disse Fernando Pessoa: ‘minha pátria é a língua portuguesa’, e essa ideia foi reafirmada por Caetano Veloso na composição musical ‘Língua’. O sotaque é uma mistura de arte, política e identidade nacional”, pontua Maria Fernanda.
José Câmara/Redação-PP